É essencial o diálogo franco entre primado do trabalho e segurança jurídica
O sentimento de esperança que o fim da pandemia ou, que o seu controle sanitário, encontre algum futuro próximo, tem trazido à baila o necessário, porém complexo, debate acerca do futuro das relações de trabalho no cenário posterior à excepcionalidade da Covid-19.
É bom destacar que já estava em curso uma delicada discussão anterior à gravíssima crise de saúde e que atinge a todos de forma indistinta: a transformação dos modelos de produção e da composição de forças de trabalho que, a um só tempo, a eles são centrais e circundantes.
A tecnologia, agora espelhada nas chamadas plataformas digitais, cria novos contornos em que a livre atuação dos agentes econômicos e a proteção dos trabalhadores são vendidas como ideias antagônicas.
Nesse cenário, em que que a pandemia restringe de forma agressiva a atividade econômica, a busca por novos caminhos de ocupação da força de trabalho e de geração de renda para uma massa expressiva da nossa sociedade reforça a necessidade de retorno aos núcleos centrais da dignidade do trabalho e da razão de existir da tutela normativa da matéria.
O primeiro e mais basilar conceito de qualquer relação bilateral – ou trilateral se considerado o conceito tripartite internacional que envolve o estado como ente das relações laborais – conduz a que o diálogo, exercido à exaustão, seja o verdadeiro norte da construção de saídas que equilibrem dificuldades de empregados e empregadores no momento sequencial à tragédia de saúde igualmente singular.
Enfrentar o tema de uma verdadeira reforma do modelo sindical é um necessário complemento a um diálogo que não desconheça a necessidade de sustentação das entidades, sem tornar esse tema condicionante, ou principal, em uma conjuntura em que o essencial é afastar a falsa dicotomia entre primado do trabalho e segurança jurídica.
A validade e eficácia das ações de diálogo maduro podem demonstrar que o momento não recomendaria a adoção de mudanças legislativas feitas para atender situações específicas e passageiras que, em razão da crise, pela natural pressa em atender necessidades contingentes, não levem em conta a reestruturação da base produtiva em curso, assim como as projeções futuras de retomada do crescimento econômico, historicamente comum após grandes recessões.
Perenizar necessárias mudanças decorrentes e de vigência contemporânea a momentos de crise, embora tentador, impõe análises mais aprofundadas, pelos riscos que embutem.
Avançar em desburocratização, simplificação de normas e na consolidação de entendimentos interpretativos da normatividade vigente talvez seja o traço intermediário para fugir do perigoso paradoxo de fomento a uma desregulamentação que desconsidere o conceito de vulnerabilidades que norteia as relações de trabalho, empregatícias ou não.
Detectar formas de se exercer o trabalho que foram compulsórias na pandemia e testadas como jamais antes, como o teletrabalho ou o home office, e a partir dessas experiências direcionar novas vagas e dinâmicas de estimular, remunerar e proteger a ocupação laboral são inexoráveis.
Aqui reside mais um desafio importante. O que a doutrina abalizada denomina saúde laboral como um conceito de integração ao ambiente, separação entre vida privada e trabalho, direito a desconexão, ergonomia como o contexto em que se dá a prestação laboral, farão do passo seguinte um convite a identificar o que é uma real dinâmica que alie produtividade ao direito ao descanso e vida saudável.
Por outro lado, emprego e atividade econômica caminham juntos e se há migração do empreender para outros segmentos, sobretudo de serviços, o emprego, a ocupação e o trabalho trilham idênticos passos.
Se em cenários de pandemia ou guerras se alude a indústrias de transformação, voltadas para os bens que se consome naqueles especiais momentos, nos cenários subsequentes, práticas comerciais exitosas conduzem a reconversões de outra natureza, por exemplo logísticas, como na vivência atual de se demandar tudo ou quase tudo pela internet ou telefone – a cultura do delivery.
Esse cenário de consumo facilitado por meios tecnológicos não extinguirá jamais o contato pessoal, idêntica fonte de outras vagas no mercado de trabalho. Em todo caso, se exigirá sempre a proteção à saúde e segurança do trabalho e do trabalhador, sob qualquer forma em que for realizado.
O paradoxo final e, ao lado da solidariedade, um dos verdadeiros legados da crise é que a mesma chave que tem sustentado a estabilidade em meio a uma circunstância de saúde pública sem precedentes, é que abrirá o caminho para que diálogo e prudência conduzam os passos seguintes também no mundo do trabalho.
Atribui-se a Hegel a compreensão de que direito é a forma institucional da vida de um povo, no sentido de que somos também o conjunto das regras jurídicas que alicerçam nossa sociabilidade.
Sim, são elas, as instituições trabalhistas, sólidas e equilibradas, que nos serão o autêntico guia nessa transição para o mundo do “novo normal” também nos pactos trabalhistas.
Precisamos de soluções estruturais que permitam uma transição de um mundo do trabalho para uma sociedade pelo trabalho. O trabalho humano jamais será desprezado. A criatividade, a inovação e, principalmente, o respeito à dignidade na esfera do trabalho são referências básicas na busca dessas soluções.
Fonte: JOTA, 13-07-2020